quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Ataque ao sistema de ensino superior público no Brasil: o que está por trás?

Por *Eduardo Alberto Cuscé Nobre
Ao longo de 2017 assistimos perplexos a vários eventos que tiveram em comum o fato de envolverem o Sistema de Ensino Superior Público no Brasil (o qual doravante chamarei de SESP) e que, mascarados por uma forma de institucionalidade e alimentados por uma sanha revanchista e um discurso de austeridade fiscal, têm na verdade um único objetivo, a sua destruição.
Enquanto políticos do alto escalão com provas incontestes de seu envolvimento em atividades criminosas se livram de suas punições, absolvidos pelos seus pares, funcionários públicos com décadas de dedicação ao SESP são submetidos a tratamentos degradantes e humilhantes, com exposição midiática indevida, sob a acusação de obstrução de justiça, sem que existam contra eles as mesmas provas explícitas apresentadas contra políticos e grandes empresários.
Refiro-me especificamente à condução coercitiva, e em alguns casos inclusive prisão, de reitores, funcionários e docentes de várias universidades federais, em operações de investigação de esquemas de corrupção aprovadas pelo Judiciário e conduzidas pela Polícia Federal, como as ocorridas nas universidades federais de Minas Gerais (UFMG) no começo de dezembro, do Paraná (UFPR) em fevereiro, de Santa Catarina (UFSC) em setembro e do Rio Grande do Sul (UFRGS) em dezembro de 2016. A truculência contra e a humilhação desses funcionários são tantas que fizeram com que o reitor da UFSC, professor doutor Luiz Cancellier de Olivo, preso por obstrução de justiça, cometesse suicídio.
O Brasil não pode se dar ao luxo de difamar suas instituições públicas sob a desculpa do combate à corrupção e sob a sanha revanchista de “passar o Brasil a limpo”. Logicamente que todos desejamos que os casos de corrupção sejam investigados, julgados e que as pessoas envolvidas tenham a devida punição, a começar pelos mais altos escalões do governo.
Além da exposição indevida e execração pública de funcionários públicos no exercício da função, parece que um dos preceitos fundamentais do direito brasileiro, o da presunção da inocência, tem sido deixado de lado. Além do que, pelo Código do Processo Penal Brasileiro, a condução coercitiva só pode ser aplicada caso a pessoa intimada se recuse a comparecer, o que parece que não foi o que ocorreu na maioria dos casos. Estaríamos vivendo assim um estado de exceção, que parece contar com o apoio de parte da sociedade e da mídia, e que agora direciona suas garras contra o SESP.
Isso poderia parecer absolutamente normal, tendo em vista que a mesma parte da sociedade e da mídia parece considerar normal o protagonismo exacerbado que o Judiciário brasileiro passou a ter nos últimos anos, sem questionar até que ponto esse protagonismo pode estar ferindo os princípios do estado democrático de direito. Contudo, essas ações associadas a outras parecem indicar que existe uma ação escondida em curso de desmantelamento do SESP.
Vamos aos fatos.
Em agosto, a comunidade científica brasileira foi abalada pelo boato de que a principal agência de fomento ao desenvolvimento científico e tecnológico nacional, o CNPq, iria cortar milhares de bolsas de alunos de graduação (iniciação científica) e de pós-graduação (mestrado e doutorado). Após diversas manifestações em peso da comunidade, o CNPq desmentiu esse boato, contudo, mesmo não tendo sido suspensas, existem vários casos de atrasos no pagamento dessas bolsas.
Se analisarmos a quantidade de recursos empenhada nas rubricas Desenvolvimento Científico, Desenvolvimento Tecnológico e Engenharias, subfunções-fim do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações do Governo Federal, ao qual o CNPq é subordinado, vemos que essa quantidade diminuiu bastante: passou de R$ 4,9 bilhões empenhados até dezembro do ano passado para R$ 3,7 bilhões no mesmo período deste ano. Essa redução de investimentos é fatal para o SESP, pois além das bolsas, várias pesquisas desenvolvidas por essas instituições contam com o CNPq como principal fonte de recursos, diferentemente das instituições privadas, que conseguem outras fontes de financiamento.
Só para termos uma ideia dessa ordem de recursos, nesse mesmo mês o governo federal liberou R$ 11,7 bilhões em emendas parlamentares e encaminhou medida provisória ao Congresso Nacional (MP nº 793) prevendo mais R$ 8,6 bilhões de perdão de dívidas dos produtores rurais, tudo isso às vésperas da votação pela Câmara dos Deputados do relatório do Ministério Público Federal que denunciava o presidente da República por corrupção passiva, conforme amplamente divulgado pela mídia.
Em novembro, o Banco Mundial lançou o relatório “Um ajuste justo – propostas para aumentar eficiência e equidade do gasto público no Brasil” em que propôs o fim do ensino superior público e gratuito como uma forma de promover o ajuste fiscal no Brasil, sem “prejudicar os mais pobres”. Essa ideia poderia ser pertinente antes de 2012, pois de fato no passado o SESP apresentou distorções graves, facilitando o acesso às já privilegiadas classes sociais de maior renda. Contudo, após 2012, com a adoção do sistema de cotas para estudantes de baixa renda do ensino médio público e gratuito e grupos autodeclarados PPI (preto, pardo e indígena) passaram a ter um maior acesso à universidade pública e gratuita, essa ideia do Banco Mundial parece não corresponder à realidade.
Dados de relatório da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) de 2016 mostram que o perfil de renda e racial dos discentes nas instituições federais de ensino superior alterou-se bastante após a adoção do sistema de cotas. Enquanto o percentual dos estudantes de baixa renda (até três salários mínimos) subiu de 40% para 51% do corpo discente, a porcentagem de alunos negros (pretos e pardos) subiu de 34% para 47%.
Ou seja, parece bastante incoerente que no momento em que o SESP se democratiza, permitindo o acesso de milhares de jovens de grupos sociais e raciais historicamente excluídos à universidade pública e gratuita, o Banco Mundial sugira que essa passe a ser paga.
Contudo, esse discurso foi muito aplaudido e festejado por essa parte da mídia e da elite brasileira, que dizem defender os preceitos neoliberais da diminuição do papel do Estado. Essa postura é cínica, pois agora que o SESP deixou de ser exclusividade da elite, permitindo o acesso a grupos historicamente excluídos, ele deixou de ser prioritário e deve ser desmantelado, porque é “caro” demais para o Brasil. Enquanto isso atividades altamente lucrativas, como as do agronegócio, sorvem cada vez mais recursos públicos, através de benefícios diretos, desonerações fiscais e perdão de dívidas.
Também em novembro, outra ocorrência bastante grave contra o SESP ocorreu quando pesquisadores do Núcleo de Altos Estudos da Amazônia (NAEA) da Universidade Federal do Pará apresentavam seminário com resultados de pesquisa científica coordenada pela professora doutora Rosa Acevedo Marín sobre os impactos de atividade da mineradora Belo Sun no Rio Xingu, quando foram atacados e cerceados de suas liberdades individuais por grupo liderado por políticos locais vinculados aos interesses da mineradora canadense, comandados pelo prefeito Dirceu Biancardi do município de Senador José Porfírio. Sob o discurso de que os pesquisadores e os membros do Ministério Público Estadual estavam impedindo o “desenvolvimento” da Amazônia, esse grupo impediu a divulgação de pesquisa científica importantíssima que apresentava os danosos impactos socioambientais dessa atividade.
Dessa forma, juntando todos os fatos acima, parece existir uma operação orquestrada contra o SESP no Brasil que junta diferentes ações e discursos, como o do combate à corrupção, o da necessidade do ajuste fiscal e/ou até mesmo porque a postura crítica de parte dos pesquisadores desse sistema seria um empecilho ao retorno do crescimento econômico.
Esse discurso vem ao encontro dos interesses de poderosos grupos privados multinacionais do ensino superior, que agora veem no Brasil uma possibilidade de expansão dos seus negócios lucrativos. Contudo, esse panorama também não é positivo para o ensino superior nacional. Afinal de contas, o Brasil conta com uma infinidade de instituições de ensino superior privadas, muitas já vinculadas a esses poderosos grupos internacionais, mas são as instituições do ensino superior público que aparecem no topo da lista das melhores universidades do mundo. Curioso notar que quando uma delas cai de posição ou é ultrapassada por outra (pública), essa parte da mídia “desinteressada” logo alardeia o fato, insinuando a decadência das instituições públicas, sem se lembrar quão longe as privadas nacionais estão delas nesses “rankings”.
Assim sendo, boa parte do discurso e da prática que estamos assistindo esconde uma agenda oculta, que tem como interesse principal a destruição do SESP, a subjugação dos setores estratégicos nacionais aos interesses de grandes empresas internacionais e a destruição de qualquer pensamento crítico que se oponha a esse projeto hegemônico. É justamente essa agenda que está por trás do discurso contra o SESP.
A meu ver, o Brasil não se recuperará caso o SESP seja desmantelado. Ficaremos reduzidos a uma intelligentsia compradora, eternamente dependente da ciência e tecnologia internacionais, pagando elevados royalties por isso, a um sistema de ensino superior comandado por poderosos grupos econômicos internacionais pautados pela lucratividade e passando a apresentar um ensino superior elitista e conteudista em detrimento de um ensino democrático, pluralista e crítico, que certamente resultará na piora das condições sociais, principalmente na distribuição de renda, que já é uma das piores do mundo, visto que no Brasil ainda são as camadas mais instruídas as que possuem a maior renda.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil, em 18/12/2017.
*Eduardo Alberto Cuscé Nobre é arquiteto e urbanista, mestre e doutor em Arquitetura e Urbanismo, respectivamente, pela Oxford Brooks University (OBU) e pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e pós-doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur/UFRJ). Atualmente é professor de Planejamento Urbano e Regional dos cursos de graduação e pós-graduação da FAU-USP e presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
** Articulando esclarece que o conteúdo e opiniões expressas nos artigos assinados são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do coletivo de educadores.

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